terça-feira, 9 de setembro de 2014

Design, preconceito e dever

Gostaria de escrever um pouco (na verdade um muito) sobre uma situação que vem me incomodando por um bom tempo e que diz respeito às possibilidades de atuação de todos nós estudantes e profissionais da área do design, bem como alguns compromissos que devemos honrar. Entretanto, gostaria muito mais que os “não designers” pudessem ler o texto a seguir, pois para quem é da área, escrever isto aqui é chover no molhado.

Não é novidade para muitos o quanto a nossa profissão é pouco compreendida e, por consequência, desvalorizada. As pessoas em geral desconhecem o profissional e por isso não o procuram, ou então possuem uma visão caricatural e distorcida da profissão, o que resulta na rejeição da necessidade de seus serviços ou na procura do designer para serviços cuja competência para execução não pertence exatamente a ele, mas sim a profissionais de outros setores. Isso acontece tanto na esfera individual (como por exemplo no caso dos seus avós, tios ou mesmo seus pais, que quando ouvem que você está cursando “design”, soltam aquele característico “Ah...” de quem não tem o que comentar porque não sabe do que diabos você está falando) quanto na esfera empresarial (quando aquele micronegócio contrata os seus serviços para bolar um “loguinho” para a fachada do estabelecimento).

Não é raro haver confusão entre o designer e o ilustrador, por exemplo. O designer pode até trabalhar como artista ou como ilustrador, mas ele não é essencialmente nenhum destes, apenas toma emprestado ferramentas e conhecimento de variadas áreas, incluindo estas, para exercer sua própria atividade. Adicionalmente – e é com muita tristeza que eu digo isso, – há um preconceito, já fortemente enraizado no senso comum das pessoas e das organizações, de que o design serve sobretudo como complemento estético para produtos já pensados e projetados por outros profissionais “tecnicamente qualificados”.

O designer, na realidade, é um projetista. Ele projeta coisas – desde a estrutura básica até os detalhes finais. Quando trabalhando em equipes multidisciplinares, ele deve aplicar seus conhecimentos em conjunto e em constante diálogo com o restante da equipe durante todas as etapas do processo produtivo, desde a sua concepção fundamental até os acabamentos finais e a implementação. Muitas vezes ele exerce papel fundamental inclusive em etapas posteriores ao consumo e ao fim do ciclo de vida dos produtos. Em hipótese alguma o trabalho do designer se resume a criar um envoltório externo somente para embelezar e humanizar o produto e torná-lo mais agradável aos olhos do consumidor. Na verdade, para o designer nem deveria existir a palavra “consumidor”; o que deve existir é a palavra “usuário”. O diálogo com o usuário é tão importante quanto com a equipe, e o planejamento estético e visual nada mais é do que um dos muitos resultados do entendimento das necessidades do usuário.

Você compreende o real potencial do design – que, se bem utilizado, pode agir como instrumento de consideráveis transformações sociais – quando considera suas dimensões conceitual e estratégica, e não apenas quando recorre ao design para a resolução de problemas de ordem prática e imediata. Exemplos: um problema de ordem prática seria a elaboração de um material gráfico, como um cartaz ou folder para a divulgação de um evento esportivo; e por outro lado, um problema de ordem estratégica seria confrontar-se com a seguinte questão: “Como eu comunico de forma eficiente às pessoas de que há um evento esportivo do qual elas gostariam de participar e como eu as empolgo e estimulo para que vão ao evento?” Perceba a grande amplitude e abrangência do segundo problema frente ao primeiro. No primeiro caso você trabalha com princípios e técnicas de composição para gerar um produto físico cotidiano (mais do mesmo), enquanto no segundo você trabalha com ideias e com planejamento, buscando soluções a partir da raiz do problema e oferecendo design durante todas as etapas do processo, não apenas no fim do tubo (que seria, neste exemplo, a composição gráfica do cartaz). Ao deparar-se com o segundo problema, de ordem estratégica, se faz necessária uma abordagem mais ampla, que poderia levar, digamos, a ações de cunho social que não apenas divulgassem o evento, mas que promovessem o bem-estar e a saúde através do estímulo à prática esportiva.

O design, assim como todas as outras áreas do conhecimento, é como uma arma: pode ser bem ou mal utilizada; isso depende do preparo de quem a utiliza. E que fique bem claro que quem a utiliza é a sociedade, e não o designer exclusivamente. O designer, contudo, tem, mais do que todos, a obrigação de usá-la como membro da sociedade, a serviço desta.

E para isso, é preciso compreender tanto quanto possível a sociedade, o público alvo, o usuário, o consumidor. É preciso saber suas necessidades e ouvir suas opiniões – não que todas sejam proveitosas. Mas mesmo que não sejam, contribuem para saber como o usuário pensa e age. Ser designer é compreender o outro. É por isso que não se projeta absolutamente nada sem pesquisa e sem coleta de dados. Excluindo-se a etapa de coleta de dados de um projeto, todas as outras etapas basear-se-ão em conceitos desprovidos de fundamentos e levarão a decisões arbitrárias. O ato de projetar é muito importante e complexo para depender de arbitrariedades. Exercer a profissão de designer e não efetuar pesquisa é como querer estrelar um show de sapateado sem saber andar. Impossível querer esquematizar a interface de um website sem conhecer seu propósito, o público ao qual se destina, as limitações técnicas da plataforma ou instrumento de desenvolvimento, as questões legais envolvidas e tantos outros fatores. Não é só desenhar, amigos.

Em resumo, atrás de uma luminária ou de um layout bonito, há muito a ser considerado. Às vezes o layout e a luminária sequer são necessários. E isso nem sempre é visível aos olhos da maioria. Portanto, é crucial que os profissionais e estudantes da área sejam insistentes e determinados a construir uma visão do design adequada à importância que ele deve e merece ter, evitando o silêncio frente a decisões e demandas que julguem equivocadas e exercitando a dialética persuasiva (acho que essa expressão é quase um pleonasmo, mas enfim) aliada ao rigor técnico. Nós também temos muito conhecimento técnico e devemos saber utilizá-lo. Nas palavras de Norberto Bozzetti, cuja palestra eu tive a felicidade de acompanhar recentemente na minha faculdade, devemos nos proibir de dizer “eu acho” se quisermos ser levados a sério. Por que ninguém dá pitaco sobre como o médico deve costurar os pontos numa ferida do paciente?

Por fim, quem não é da área também deveria estar mais aberto às considerações feitas pelo designer quando este recebe o briefing do trabalho para o qual foi contratado. Talvez você não esteja solicitando design, mas uma solução padrão pronta, para a qual não é essencial o ato de projetar. Só lembrando: o designer é um projetista, não um embelezador. Talvez você esteja perdendo muitos benefícios (econômicos, sociais, culturais, ambientais) ao limitar o trabalho do designer. E não me venha com “hair design”, isso é uma abominação sem tamanho.

Giovanni Ramos
Estudante de Design na UFRGS
Porto Alegre, setembro de 2014


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